sexta-feira, 14 de junho de 2013

CPI DO JOÃO [José Guilherme]

Nosso companheiro e ex-seminarista Paulo César Werneck Lacerda evidenciou uma crônica que tanto ele quanto qualquer admirador da obra de João Gilberto ficaria de fato estarrecido com a decisão de um juiz do Rio de Janeiro contra o nosso divisor de águas da Música Popular Braileira, eis a crônica:

CPI DO JOÃO
José Guilherme

De todas as tragédias a que somos obrigados no mascar diário dos jornais, ontem li a pior do ano, de longe.A imprensa brasileira noticia em capitais e dá manchetes sem medida para crimes hediondos vastamente cometidos por aí – traindo muitas vezes uma perversão hemofílica. Cabeças decepadas de turistas, corpos esquartejados de dentistas, linchamentos, rebeliões, massacres, chacinas, assaltos, perseguições, tiroteios. Vivemos em um bang-bang. Tudo isso ganha as capas dos jornais com facilidade extrema. E corre depois pela língua ligeira do mascador de palito, o habitante das esquinas, dos páteos e das portarias. "O que será que será, que anda nas cabeças, anda nas bocas (…), que estão falando alto pelos botecos, que gritam nos mercados que com certeza está na natureza, será que será?". Essas foram as perguntas do trovador Chico Buarque, nos idos dos anos 70. Em nosso Brasil judiado de hoje em dia, o assunto-mór das calçadas tem sido as barbaridades repetidas de uma sociedade culturalmente agônica, condenada à violação constante de seus próprios princípios fundadores Pois eis que aconteceu de novo, e tem a ver exatamente com princípios fundadores, se o leitor me permite a gracinha. É que ontem, perdida num cantinho da Folha Online, estava a notícia de que um juiz durão,  no Rio de Janeiro, concedeu liminar favorável à EMI no caso arrastado "João Gilberto contra a violação de seus direitos de autor". Pela liminar, a gravadora foi desobrigada de devolver a João as matrizes – isto é – as gravações originais de seus três primeiros álbuns, pérolas da arte universal. O plano de João era simples: com o material na mão, mergulhar em processo minucioso de audição (minúcia afinal é com ele mesmo) e dedicar-se a remasterizações delicadas, que pudessem alinhar suas performances antológicas aos padrões excelentes da tecnologia musical atual. Daí sairia uma caixa, um "João definitivo", um "João remixado", um "João por ele mesmo", e assim por diante. A história desse enrosco é longa, complexa, cansativa. Mais lúcida, e pensando na cultura brasileira, a juiza Simone Dalila Nacif Lopes proferira sentença anterior em favor de João e seu pleito. Afinal, há dois anos, o Supremo Tribunal de Justiça reconheceu como legítima a posição do músico. Faz tempo que o Brasil maltrata João Gilberto, com impiedade chocante, com a mesma "pulsão de morte" que libera para maltratar a si mesmo. Faz tempo que a nossa desconexão com as questões profundas de nossa própria cultura radicalizou-se nessa caricatura sanguinária que atende pelo nome de Televisão Brasileira. Vá lá que a cultura é múltipla e multifacetada, felizmente o é, e deste mísero cronista jamais encontrará o leitor uma única palavra de censura às vagas populares e popularescas do momento. Muito pelo contrário. Mas é de nos perguntarmos se a nossa mídia seria capaz de chocar-se apaixonadamente com uma notícias destas, a ponto de repercutí-la com o mesmo tom dramático que emprega para falar de sangue derramado e dinheiro escorrido. Pois trata-se de um dos maiores absurdos jurídicos imagináveis em matéria de direito autoral, além de atentado ao patrimônio coletivo. É um case para teses de doutoramento em direito internacional.

Fantasia

Fico pensando se a revista Veja daria a João e sua obra uma dessas "capa-denúncia" que fizeram sua fama. Na mesma fábula infantil, ponho-me a imaginar um take de José Luiz Datena, em o seu peculiar histrionismo: "Fecha aqui ô fulano, fecha aqui. Agora escutem esse absurdo. Essa monstruosidade. Um juiz, no Rio de Janeiro… A gente não sabe nem o que dizer… Um juiz no Rio de Janeiro autorizou o sequestro de um bem público. O compositor João Gilberto, nascido em Juazeiro da Bahia e hoje ameaçado de despejo no Rio de Janeiro, está com a sua obra retida, sequestrada por uma gravadora gringa, com filial no Brasil… E um juiz carioca deu uma sentença A FAVOR da gravadora, que impede o povo brasileiro de ouvir a música original desse nosso grande intérprete. Não dá nem para comentar. Presidente Lula, o senhor não vai dizer nada? Isso é assunto de Estado, Presidente".

Preferência nacional

A população brasileira se alvoroça com a violência física e os crimes de lesa propriedade. Debate sua "maioridade penal". Noutra ponta, deu também para chocar-se com tudo o que seja "corrupção", a chaga nacional do momento, conceito porém já tão solto e genérico que exige volta e meia um sociólogo a explicar, na mesma "TV Espetáculo", que diabos é? e que diabos não é? "corrupção". Enquanto isso, a imprecisão vocabular vai abrindo seus caminhos pela rua. "Seu corrupto miserável!", ouvi outra dia a velhinha dizer para o moço no caixa da padaria, que havia se enganado no troco. Durante o julgamento do assim chamado "mensalão", os jornais brasileiros foram quase monotemáticos. Dias e dias a fio, como se o mundo tivesse parado, como se o próprio Tempo suspendesse a si mesmo para assistir o julgamento erudito daquela meia dúzia. Dava até para imaginar a cena: "Senhor, não podeis entrar aqui, a sessão é fechada", diria a ministra Carmem Lúcia. "Como 'fechada'?", ele responderia. "Sou o Tempo, em pessoa, quero assistir. Não dissestes tratar-se do julgamento do século? Vim ver".Para mim, o julgamento do século correu silenciosamente ontem, numa vara ordinária da capital fluminense.
No processo jurídico-televisivo do tal "petismo-lulismo", juizas e juizes foram presença assídua "no breu das tocas". Tornaram-se íntimos do homem comum, que descobriu a existência da toga, da magistratura, das bandejas prateadas e do cerimonial de palácio. Viu o couro amarelado das cadeiras tribunais, as xícaras e as canetas douradas, os papéis em pilhas. Colidiu com Lewandowski e noivou com Joaquim Barbosa. Da nossa justiça é por certo o que mais se fala hoje sob o guarda-chuva largo dos manobristas. "É lenta, morosa", dizem uns. "Um escândalo", dizem outros. "Viste que absurdo? Estão julgando Fulano de Tal por um crime cometido há vinte anos!" "Não temos justiça". "É o país da impunidade". O esteio para esse espírito decadentista que assola o país é sempre alguma barbaridade corporal ou dinheirística. Alguém matou, alguém roubou, não foge disso. Pois saiba o leitor deste Yahoo! Brasil que, em 8 de maio de 2013, não foi nenhum "nóia do crack", não foi um "menor infrator" e nenhum "mensaleiro do PT". Foi uma sentença judicial quem entrou em nossas casas e dos nossos ouvidos retirou o direito à nossa própria história. A ação foi limpa e elegante, não houve derramamento de sangue. Ninguém há de se interessar pelo assunto e ninguém acenderá "velas nos becos". Mas que foi uma tragédia, não tenham dúvida de que foi. Pois ocorre, meus senhores – e não pensem vocês que exagero –, que a vida não é vida sem a arte. E que sem o trabalho de homens como João Gilberto talvez nem fosse o caso de lutarmos pela longevidade.

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